Évora, 21 de Agosto de 1534. Dom João III, por carta de Foral, eleva à categoria de cidade a vila de Angra, concedendo-lhe liberdades e privilégios iguais a todas as outras cidades do reino, num reconhecimento não só pelos muitos serviços que os angrenses prestavam e haviam prestado no apoio às naus das índias que a ela aportavam, como pelo facto de estar a vila “mui acrescentada e enobrecida”.
Angra, pequena baía dos nossos sonhos, lugar mítico de encontros e de aventuras, das descobertas e das rotas do ouro e das especiarias, construída palmo a palmo, rua a rua, casa a casa pelo labor dos angrenses, que a coloriram com as suas varandas de ferro forjado, casas senhoriais salpicadas por paletes de cores, imponente na sua Sé Catedral, majestosa no rendilhado dos seus morros esculpidos pela força humana, muralha filipina erguida pelo desespero dos vencidos, que cedo perceberam não bastar muros para quebrar a determinação das suas gentes.
Angra, cidade livre e de liberdade, porto seguro de Dom António, Prior do Crato, de Dom Pedro IV, de Dona Maria II, cidade que não vergou quando outros lugares claudicaram, heróica e do Heroísmo em momentos que marcam a nossa história e a nossa identidade enquanto cidade e enquanto país.
Angra, cidade moldada pela água, pela terra, pelo fogo, rasgada por um curso de água que aportava à sua baia, lugar único nas rotas das naus, mas inóspito e agreste na sua génese, com escarpas de basalto que a miravam, imponentes e desafiadoras. Das encostas começou a erguer-se o casario, da ambição e do querer dos angrenses se foram vencendo os obstáculos, traçando a urbe do mar para a terra, de uma rua dita Direita até aos celeiros aconchegados no Alto das Covas, e onde a prosperidade do comércio gerou hospital, alfândega, matadouro, colégios de saberes e palácios, cadinho de influências e culturas que a têm marcado, cidade moderna antes de se falar de modernidade, global antes de se falar de globalização, transatlântica quando a vastidão do oceano atemorizava e profetizava isolamento, pois lugar nuclear nas rotas que fizeram dos mundos um só mundo.
Angra, cidade de múltiplos sabores, aromatizada pelas especiarias, onde o viajante era brindado por uma miscelânea de sensações desconhecidas porque mescladas de forma única, produto de um brio e de um orgulho impar nas suas raízes, materializado em pequenos gestos do quotidiano tão simples como a harmonia de uma “Dona Amélia”, de uma Cornucópia ou de um “Africano”.
Angra, cidade solidária, onde a partilha se desenvolve no troar dos foguetes em louvor do Divino, dádivas de pão, carne, vinho e leite embaladas ao sabor dos “pezinhos”, numa vivência de comunidade onde urbe, natureza e amizade se congregam num espaço único que faz de Angra não uma cidade, mas a cidade dos Açores.
Angra, cidade porque renascida das cinzas após o sismo de 1 de Janeiro de 1980, e cuja reconstrução simboliza bem o espírito e a garra dos angrenses que a reergueram num acto memorável, deixando-lhe os traços que sempre a marcaram e, sobretudo, o espírito do lugar cujo reconhecimento foi motivo de classificação enquanto Património Mundial pela Unesco.
Angra, cidade da tolerância e multicultural, acolhendo e fazendo seus filhos quem a ela aportaram, proclamando a sua diferença pelos traços da sua história, mas não ficando refém dela. Por isso, cidade moderna e da modernidade, que vai criando e deixando marcas distintivas ao longos dos séculos, onde elementos arquitectónicos conjugam passado, presente e futuro.
Angra, cidade do mar, das naus, do dia de “São Vapor” mas também da sua Marina, embalada pelo Monte Brasil como sentinela, e cuja luz dá ao casario tonalidades mágicas, num contraste entre o cinza que reforça o basalto e um azul límpido que nos aporta ao mediterrâneo, as rotas das índias e das Américas, ao desejo eterno de voltar quando dela precisamos de sair.
Angra, cidade das suas gentes que a moldaram, a fizeram crescer, a estimam como um bem precioso. E são essas gentes que hoje homenageamos, ao celebrar os 475 anos de elevação de Angra a cidade.
Nas figuras do Engenheiro Marcelo Bettencourt, do Médico Luís Brito de Azevedo e do Engenheiro José Ribeiro Pinto espelham-se de forma notável a garra e o querer dos angrenses, em momentos únicos mas, sobretudo, no seu dia-a-dia feito de determinação, ousadia, garra e generosidade.
Quem hoje homenageamos está associado a momentos tão marcantes como o processo de reconstrução, a solidariedade e dedicação profissional e a divulgação de actividades culturais que são já uma referência indelével no panorama nacional e internacional.
Angra é cidade porque os angrenses nisso a transformaram. Ano a ano, geração em geração, momento a momento, soube sempre por onde ir, o que fazer, com que sonhar.
E isso fez de Angra o que ela é hoje. O espelho e reflexo das suas gentes.
E é mesmo muito bom ser angrense!
Discurso de Andreia Cardoso, Presidente da Câmara de Angra do Heroísmo. Texto proferido na sessão solene comemorativa dos 475 anos de Angra do Heroísmo.
Fonte- Jornal A União
. Bom 2015